quarta-feira, 11 de junho de 2008

Discussões e incertezas: a escrita está mudando

Quatro ratificações e Acordo Ortográfico segue sem implantação
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Por Sidney Azevedo
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A próxima reunião da Comunidade de Países de Língua Portuguesa deverá ter na pauta de discussão a implantação do Acordo Ortográfico nos próximos anos. O tema volta a ter força, após dezoito anos de negociação, com a ratificação do Acordo pelo parlamento português, em 16 de maio. Pelo acertado no segundo protocolo modificativo, de 2004, o Acordo passa a valer assim que três países o ratificarem. Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe já o tinham ratificado até 2007. Desde então a aplicação da nova ortografia tem se dado de modo hesitante. Professores, tanto no Brasil como em Portugal antecipam algumas regras, mas sem muita certeza de quando passam a vigorar. Com a ratificação de Portugal, o Acordo tem mais chances de aplicação.
Quando se fala nas modificações propostas pelo Acordo Ortográfico muitas vezes confunde-se ortografia e gramática. Muitos pensam que pode haver mudanças na estrutura frasal ou no vocabulário, quando, no entanto, ele só muda a forma de escrever as palavras: “Isso significa que teremos de escrever como brasileiros? Já nos não bastam as novelas a massificar?”, questiona o armador português Alberto Araújo, 26.
Noutras vezes não se sabe do Acordo: “O quê, vão mudar o português? Já não era sem tempo!”, exclama a vendedora brasileira Ketlin Espíndola, 19; “Isso é bom, precisava evoluir”, diz Renata Ganzenmüller, 18, brasileira que faz curso técnico de contabilidade.
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Nem sim, nem não
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A controvérsia em torno do Acordo não está nas ruas, entre os aproximadamente 230 milhões de falantes da língua, mas nos núcleos envolvidos com as letras, pelo menos no Brasil. O professor de português e músico Abdon da Silveira, 62, acompanha de longe e concorda resignado com a mudança por entender que ela facilita o trâmite burocrático entre os países, sem a necessidade de dois documentos oficiais, mas afirma: “as alterações devem ser outras”. Insistiu algumas vezes que “isso não fará do português uma língua com força internacional”, embora “aproxime os países falantes”.
O também professor de língua portuguesa Anilton Weinfurther é contrário ao acordo porque ele equivale a “trocar seis por meia-dúzia”. Questionado sobre que mudança deveria ser feita pelo Acordo, mencionou as regências verbais por serem grande fonte de confusão. Para modificá-las seria precisa uma nova gramática.
Pedro Tadeu Vexani, 26, estudante de jornalismo que cursou Letras por um ano, fala em uma “pasteurização do português”, e por isso não concorda com o Acordo. “A beleza da língua reside em sua complexidade”, comenta, e lembra que o middle-english de Shakespeare era complicado, assim como sempre o foi o francês, que era a língua padrão do século XIX. Vexani não crê que as mudanças possam tornar o português uma língua “mais forte”, mesmo que a ambição seja essa.
O aluno de jornalismo Rodrigo Silveira viveu três anos em Portugal e reconhece no país o tradicionalismo. Pensa que a modificação “tende a criar um espírito comum entre os países”, a aproximá-los não apenas no plano de documentos político-econômicos, mas no cultural também. “Em Portugal usam-se muitas gírias vindas de Angola, mas quando o assunto é o Brasil, as coisas parecem afastadas e se quer afastar mais”, observa.
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Extremadas e desmentidos
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A imprensa portuguesa polemizou bastante sobre o assunto. “Os jornais sempre davam às falas de Graça Moura um lugar primeiro por concordar com seu conservadorismo ranhoso”, explica o estudante de Letras João Manuel Azevedo, 29. Vasco Graça Moura é jurista, deputado europeu e um dos personagens da batalha de artigos contrária ao Acordo. Segundo o eurodeputado, o Acordo não tem validade enquanto todos os países não o ratificarem, como prevê o texto original de 1990. Outros defendem que poderia haver a obsolescência súbita de livros e a conseqüente destruição de bibliotecas. “Ora, não veem que não tem sentido manter um ‘p’ em ‘óptimo’ quando não se o pronuncia…, a não ser para quem gostou da Ditadura”, ironiza o vendedor Tiago Sousa, 22, ao relembrar a ditadura de António Salazar, que insistia que “as colónias voltariam a ser de Portugal”.
“Embora a maioria dos portugueses entenda e esteja indiferente ou aceite a modificação e não perca tempo discutindo em páginas da Internet”, diz João Azevedo, “o grupo antiacordo emprega pressões para impedir a promulgação do Acordo pelo presidente”. O Manifesto em Favor da Língua Portuguesa, liderado por Graça Moura, com quase 60 mil assinaturas, já foi entregue a Aníbal Cavaco Silva por duas vezes.
Um dos argumentos do Manifesto diz que “as editoras portuguesas ficam assim prejudicadas quanto ao mercado africano”. “Isso não é óbvio?”, pergunta Alberto Araújo, “não parece que o Acordo só atende aos interesses do Brasil?”.
Para o doutor em comunicação Jorge Pedro Sousa, que não tem acompanhado muito a questão, a idéia da obsolescência súbita é “ridícula” porque “hoje se lêem bem livros do século XVI”. Sobre o mercado editorial não vê mal nenhum na concorrência em cada país lusófono: "Oxalá os livros em Português possam circular com facilidade em todo o mundo!”. “Quando se fizeram mudanças na ortografia sempre houve oposição, mas depois de um período as novas grafias entraram facilmente nos hábitos dos falantes de Português”, conclui o pesquisador em entrevista por e-mail.
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Visão de um angolano
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“Angola tem mais a ganhar com a existência de uma ortografia unificada do que Brasil ou Portugal”, afirma o jornalista e escritor angolano José Eduardo Agualusa. O país tem, segundo ele, apenas uma editora, que é estatal, e que se destina à publicação de editos (textos oficiais do governo). Agualusa teve de ir a África do Sul para publicar seus livros. “Em Portugal o custo é demasiado elevado, voltei triste”, afirma na entrevista por e-mail. O autor afirma que a principal vantagem reside na educação. “Precisamos desesperadamente de livros. Importamos livros de Portugal e do Brasil. Isso significa que temos livros em duas ortografias no nosso território, facto que suscita natural confusão, sobretudo aos leitores recentemente alfabetizados”, expõe no artigo Acorda, Acordo, ou dorme para sempre. E também alerta: “caso o acordo não venha a ser aplicado – por resistência de Portugal –, entendo que Angola deveria optar pela ortografia brasileira”.
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Mudanças
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As estimativas estão em 1,6% de modificação para o português europeu e 0,5% para o português brasileiro. As mudanças são:
O alfabeto passa a ter 26 letras, com a inclusão oficial de ‘k’, ‘w’ e ‘y’, na aplicação de palavras de outras línguas.
Fica abolido o trema, até na poesia, à exceção de palavras estrangeiras: qüinqüênio passa-se a escrever ‘quinquênio’; lingüiça, alcagüete, e agüentar passam a ‘linguiça’, ‘alcaguete’ e ‘aguentar’, em seqüência; ‘müelleriano’, por exemplo, permanece com o trema.
É abolido o acento de ditongos abertos: heróico, jóia e idéia escrevem-se ‘heroico’, ‘joia’ e ‘ideia’; de paroxítonas dobrada com ‘oo’ e ‘ee’: enjôo, abençôo e lêem passam a ‘enjoo’, ‘abençoo’ e ‘leem’; e os diferenciais: pára e para grafam-se como ‘para’, pêlo, pélo e pelo grafam-se ‘pelo’.
O hífen cai em aglutinações quando a segunda parte começa com ‘r’ ou ‘s’, dando origem a um dígrafo: contra-regra e anti-sistemático passam a ‘contrarregra’ e ‘antissistemático’; mas permanece quando o prefixo termina com as mesmas letras: hiper-regulado e pós-surrealismo ficam do mesmo modo.
Os ‘c’ e ‘p’ mudos escritos no português europeu sem serem pronunciadas caem: baptismo, carácter, e electrónico escrevem-se ‘batismo’, ‘caráter’, e ‘eletrónico’; cai o ‘h’ de algumas palavras: húmido e herva passam a ‘úmido’ e ‘erva’; mas mantém-se o ‘h’ em onomatopéias: ‘hem’, ‘hum’, ‘hã’.
É facultativo o uso de acento agudo ou circunflexo conforme a pronúncia e de alguns usos de plural: ‘eletrônico/eletrónico’, ‘fêmur/fémur’, ‘hífens/hífenes’.
As regras e exemplos foram extraídos do próprio Acordo Ortográfico.
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Histórico do Acordo
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1911 – Com a Proclamação da República em Portugal, constitui-se uma nova ortografia, sem ser debatida com o Brasil.
1931 – Primeira aproximação e tentativa de Acordo entre a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa.
1940 – Lançamento do vocabulário da língua portuguesa em Lisboa.
1943 – Lançamento do vocabulário da língua portuguesa no Rio de Janeiro.
1945 – Primeiro Acordo Ortográfico (bastante semelhante à proposta atual), realizado pela divergência dos vocabulários, aprovado em Portugal, mas vetado no Brasil.
1971 – Nova tentativa de aproximação com mudança local da ortografia no Brasil (supressão dos acentos de palavras como ‘sòmente’).
1975 – Tentativas falhas de acordo.
1986 – Reação à idéia de excluir os acentos das proparoxítonas. Criação da CPLP.
1990 – Elaboração do atual Acordo Ortográfico.
1998 – Primeiro Protocolo Modificativo, estendendo o prazo de ratificação.
2004 – Segundo Protocolo Modificativo, aceitando o Timor Leste na CPLP e permitindo que a ratificação de três países faça o Acordo entrar em vigor.
2005 – Ratificação do Brasil.
2006 – Ratificação de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe.
2008 – Ratificação de Portugal e encontro da CPLP sobre implantação da nova ortografia.

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